domingo, 31 de agosto de 2008



2 – Os ut ent es actu ais
Dois casos que recebi com a distância de 20 anos
entre eles, podem ilustrar o que quero dizer quando
me refiro a mudanças significativas nas características
dos utentes:
O primeiro caso veio em 1985. Era um jovem de pouco
mais de 20 anos. Vivia com a família composta por
mãe, pai e irmão. Tanto o pai como a mãe trabalhavam,
o irmão estava na escola, sem problemas. O nosso
utente abandonara a escola cedo e tinha encontrado um
trabalho indiferenciado. Consumia compulsivamente
analgésicos. Derretia supositórios e injectava a mistura
que obtinha, o que provocava feridas horríveis nos
locais da injecção. Veio à consulta acompanhado pela
mãe, uma mulher de quarenta e poucos anos. Como
projecto terapêutico propusemos além de cuidados
médicos, um processo de terapia familiar, para o qual
se conseguiu mobilizar tanto os pais como o irmão.
O segundo caso recebi-o no CAT do Restelo, 20 anos
depois, em 2005. Também consumia compulsivamente
analgésicos e era isto o que tinha em comum com o
primeiro caso. As suas restantes características eram
paradigmáticas das “mudanças significativas”: tinha 48
anos e, para além dos analgésicos, também abusava
regularmente do álcool. Veio à consulta acompanhado
pela mãe, uma mulher de mais de 75 anos, viúva. Viviam
ambos sozinhos, numa casa enorme e muito degradada.
A mãe recebia uma pensão e o filho, que nunca tivera
senão empregos ocasionais, recebia o Rendimento
Social de Inserção.
Entre um caso e outro a transformação não foi só agravamento,
foi também complexificação. Agravamento
porque praticamente todas as áreas da vida do indivíduo
estão a necessitar de cuidados. Complexificação no
sentido em que, no segundo caso, os elementos interdependentes
são mais e estão muito mais reciprocamente
intrincados.
No caso de 2005, não temos somente uma mãe idosa
mais o seu filho e mais a droga, mas todos estes
elementos em interacção e interdependência, de tal
forma que se realizarmos uma intervenção dirigida a
um elemento, podemos contar que desequilibraremos
todos os outros. Assim, se o utente for internado numa
Comunidade Terapêutica, extingue-se a droga e o álcool,
o que é positivo. Mas, entretanto, a mãe ficará mais
isolada e poderá perder a vitalidade mobilizada pela
necessidade de cuidar do filho, passando a necessitar
também ela de cuidados. Sem drogas, o peso da sua
situação actual desabará sobre o filho e constituirá um
factor de risco para desistir da CT. Se acrescentarmos
a probabilidade, alta, de haver psicopatologia grave
associada e, portanto, estarmos perante um caso de
duplo diagnóstico, aumenta a complexidade. Neste
quadro, que mudanças poderemos, nós e o utente,
ter esperança de alcançar? Que projecto terapêutico
e com que objectivos? Que técnicos, com as suas
especificidades, serão necessários para intervir?


texto retirado de um artigo da revista toxicodependências, escrito pela dr.ª isabel pratas... reflecte aquilo que muitos de nós sentem no terreno... os serviços também têm de acompanhar esta mudança... aguardamos bons caminhos.
esperemos ainda que não se deite para o lixo, o que a memória destes anos nos deixou

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